Desafortunados na terra prometida: o discurso da mídia gaúcha sobre os novos imigrantes no RS
- Sandra Portela Montardo e Aline Streck Donato
- 22 de jul. de 2017
- 22 min de leitura
Resumo: Este trabalho tem por objetivo refletir acerca do discurso da mídia gaúcha sobre os novos imigrantes africanos no Rio Grande do Sul. Dessa forma, visa identificar e analisar como se manifestam as relações culturais e identitárias presentes no discurso que compõe o corpus de análise, constituído por uma reportagem especial on line denominada “Novos imigrantes mudam o cenário do Rio Grande do Sul”, veiculada pelo portal de notícias da Zero Hora na seção “Notícias ZH”. Para isso, será aplicada a Teoria Semiolinguística do discurso como marco teórico e metodológico, além de conceitualizações sobre cultura e identidade e sua relação com o discurso analisado. Percebeu-se que a mídia gaúcha produz seu discurso embasada em afirmações generalistas dos imigrantes, e apresenta o Brasil como um país desenvolvido do ponto de vista econômico.
Palavras-chave: Discurso Midiático. Semiolinguística. Cultura. Imigração.

Foto: Nathalie Brasil/Diário de Manaus/ACNUR
Introdução
Diversas pesquisas, atualmente, voltam-se para a compreensão do discurso e seus meandros de significados, cuja acepção é um rico arcabouço do ponto de vista analítico. A mídia, nesse contexto, entra como um elemento passível de ser analisado, visto que, além de desempenhar o papel de formadora de opinião, atinge milhares de pessoas a partir de suas publicações, que são criadas por meio de discursos dos jornalistas.
Os estudos que concernem à linguagem demonstram a pertinência de um maior aprofundamento investigativo a respeito do discurso midiático, posto que os veículos de comunicação abrangem diversos contextos sociais e históricos em suas publicações periódicas, fazendo com que se tornem referência quanto à difusão de informações e também pelo impacto e influência que exercem frente à sociedade. Além disso, os veículos midiáticos sempre ocuparam um lugar privilegiado junto ao público, muitas vezes como a primeira fonte de informação crível de um corpo social.
Deve-se atentar, entretanto, que todo tipo de informe fornecido por um veículo de mídia é construído a partir de discursos moldados por meio da identidade e construção social tanto da empresa responsável pela informação – que possui uma linha editorial a ser seguida - quanto do indivíduo que a compôs, frente à sua concepção psicossocial de mundo.
A mídia, dessa maneira, apresenta uma dupla significação para a comunidade: ao mesmo tempo em que difunde os acontecimentos de interesse público, o faz através de discursos criados pelo próprio veículo de comunicação e pelos profissionais do campo jornalístico. Passa a ser, assim, concebida e divulgada a interpretação de uma notícia realizada por alguém, não a informação em seu estado puro, visto que a mesma inexiste quando se considera que toda informação, a partir de seu contato com qualquer sujeito social, é moldada pelas interpretações socioculturais que o último a emprega.
Nos últimos anos, o interesse da mídia gaúcha vem tornando-se crescente acerca de uma mudança social no cenário do Estado do Rio Grande do Sul: o contínuo fluxo de imigrantes oriundos de países africanos. Essas pessoas, hoje comumente pautadas pela mídia, são, em sua maioria, homens jovens que abandonaram suas famílias e país de origem em busca da chance de uma vida melhor em um lugar até então próspero e desconhecido.
Interessado em refletir sobre o discurso midiático a respeito desse fluxo migratório, o presente artigo tem como questão norteadora a afirmativa de que a mídia gaúcha atribui ao Rio Grande do Sul, por meio de seu discurso, a ideia de uma “terra prometida”, onde os novos imigrantes buscam alternativas de sobrevivência que não encontram em seus países de origem. Deve-se deixar claro, entretanto, que toda a construção simbólica e material ao redor do termo “terra prometida” não tem sua origem apenas na mídia gaúcha, mas que a mesma faz uso desse imaginário em suas reportagens.
Compreende-se aqui, também, a necessidade de uma abordagem interdisciplinar, visto que o objetivo desse trabalho é descrever e analisar o discurso da mídia gaúcha sobre os novos imigrantes, e apresentar questões relativas à identidade e cultura presentes no discurso midiático.
O corpus de análise é composto por uma reportagem especial veiculada de forma on line no dia 16 de agosto de 2014 pelo portal de notícias do Jornal Zero Hora, denominada “Novos imigrantes mudam o cenário do Rio Grande do Sul”. Como marco teórico e metodológico, será utilizada a Teoria Semiolinguística de Patrick Charaudeau (2005), além de conceitualizações do próprio autor sobre o ato e os sujeitos de linguagem (2008) e o discurso midiático (2013). Pretende-se, dessa forma, verificar marcas discursivas no corpus de análise ao apontar os dados internos e externos do contrato de comunicação em pauta.
Pretende-se, assim, realizar contribuições acadêmicas do ponto de vista tanto discursivo quanto identitário e cultural acerca da mídia gaúcha, além de estabelecer relações com o contexto do fluxo migratório atual no Rio Grande do Sul e seus desdobramentos midiáticos e sociais.
Cultura e identidade no ato de linguagem
Um ato específico de linguagem traz muito mais significações e especificidades do que aquilo que transparece à primeira vista por meio da utilização de componentes léxicos e gramaticais. As intencionalidades, os não-ditos e a real acepção de uma fala carece da compreensão de um contexto ao qual se insere o ato de linguagem, além da construção psicossocial do agente portador da fala.
A produção de um ato de fala permeia-se no campo do obscuro, do subentendido, daquilo que calca-se em estratégias de composição criadas pelo enunciador a partir de desígnios inerentes a si, à sua identidade e ao contexto sociocultural. Contexto esse que estabelece relações entre os participantes e sendo de grande valia para a relação que se estabelece entre eles, visto que compartilham um mesmo espaço social. Para compreender e desvendar como se dá o ato de linguagem, então, necessita-se também um entendimento sobre questões de cunho cultural.
Geertz (1989), nesse sentido, apresenta as definições sobre cultura como sendo o modo de vida global de um povo; o legado social que o indivíduo adquire do seu próprio grupo; uma forma de pensar, sentir e acreditar; uma abstração do comportamento; uma teoria sobre a forma pela qual um grupo comporta-se realmente; um celeiro de aprendizagem em comum; um conjunto de orientações padronizadas para os problemas recorrentes; comportamento aprendido; mecanismo de regulamentação normativa do comportamento e, por fim, conjunto de técnicas para ajustar-se ao ambiente externo e aos outros homens.
Assim sendo, Geertz (1989) consegue relacionar a questão comportamental e de construção social a partir de aspectos relativos à cultura, posto que a elucida de maneira a associar as formas de atuação e normatização de comportamentos na sociedade. Quando este conceitualiza cultura como uma necessidade de adaptação ao ambiente e aos outros indivíduos, relaciona-se, aqui, ao que Charaudeau (2008) afirma sobre o ato de linguagem e a relação entre os indivíduos que compõem o mesmo. De acordo com o autor (2008, p. 56), “o sujeito comunicante deve organizar o que está disponível no conjunto de suas competências, levando em conta a margem de liberdade e de restrições de ordem relacional que dispõe”, ou seja, a questão de adaptação ao outro e ao contexto social torna-se clara em ambos os autores.
Seguindo essa linha de raciocínio, John B. Thompson (1995) afirma que o estudo dos fenômenos culturais pode ser pensado como a análise do mundo sócio histórico constituído como um campo de significados. Pode ser pensado, também, ainda conforme o autor, como o interesse acerca das maneiras como as expressões significativas são construídas e recebidas por indivíduos situados em um mundo sócio histórico. Assim, relaciona-se que a produção e interpretação do ato de linguagem realizada pelos agentes enunciadores é desenvolvida a partir de um determinado contexto histórico e cultural, embasada em temáticas e intencionalidades próprias desse ambiente.
Sobre isso, Charaudeau (2008) explica que, para um sujeito ser bem sucedido na execução de um ato de linguagem, poderá fazer uso de contratos e estratégias, como a noção de que os indivíduos pertencentes a um núcleo de práticas sociais pariformes possam chegar a um acordo acerca das representações linguageiras dessas práticas. Portanto, infere-se que o contexto social e cultural, aqui, é decisivo para a determinação das competências linguageiras que serão utilizadas no ato de linguagem, sendo que o sujeito comunicante percebe o sujeito destinatário como alguém culturalmente igual a si.
Ainda conforme Charaudeau (2008), o ato de linguagem compõe-se de dois circuitos de produção do saber: (i) o da fala configurada no espaço interno, onde é instituído o sujeito enunciador e o sujeito destinatário - aqui, os dois possuem conhecimentos oriundos e contextualizados às práticas sociais, ou seja, são instituídos e reconhecidos como pertencentes a uma mesma circunstância sociocultural -; (ii) o da fala configurada no espaço externo, onde os agentes são instituídos como sujeito comunicante e interpretante, a partir da consideração de que ambos fazem parte de uma organização psicossocial que sobredetermina tais sujeitos.
Nos dois circuitos de produção do saber, o ato de linguagem e os sujeitos que o integram tornam-se dependentes de um contexto histórico, social, cultural e comportamental. Tem-se, nesse quadro, parceiros de troca linguageira que representam diferentes papéis – e também projetam e esperam comportamentos do outro – a partir de saberes compartilhados de uma visão global de mundo e sociedade. Para uma melhor compreensão acerca dos agentes que executam o ato de linguagem, carece, aqui, uma explicação sobre a definição dos sujeitos de linguagem.
Breve definição dos sujeitos da linguagem
Charaudeau (2008), ao conceitualizar o ato de linguagem, explica que o processo de produção e interpretação do mesmo necessita de uma apreensão acerca dos saberes que os protagonistas da linguagem possuem um do outro e de si mesmos. Conforme o autor, o destinatário, que aqui chamaremos de TU, não é apenas o receptor de uma mensagem, mas alguém que interpreta o processo do ato de linguagem por meio de conceitos sobre o sujeito enunciador, o EU, concebidos a partir de seu conhecimento de sociedade e de mundo.
Ainda de acordo com o autor, da mesma maneira, o EU calca sua enunciação com base na intencionalidade de que o TU seja adequado ao seu propósito linguageiro, ou seja, cria uma imagem sobre seu parceiro no ato de linguagem e “aposta” que ele adeque-se a ela.
Dessa forma, o antigo modelo de comunicação que baseava-se na sequência emissor-mensagem-receptor cai por terra, posto que, como elucida Charaudeau (2008), o ato de linguagem deve ser visto como um encontro dialético entre dois processos: o de produção e o de interpretação. No primeiro, o ato de linguagem é criado por um EU enunciador e destinado a um TU destinatário; já no segundo, um TU interpretante constrói uma imagem do EU locutor.
Na constituição do primeiro processo, o de produção, o agente de fala do ato de linguagem cria uma imagem do destinatário ideal, o TU, e modaliza sua mensagem a partir dessa situação esperada e imaginada por ele, produzindo sentido por meio do discurso. No processo de interpretação ocorre o contrário: agora é o TU, assumindo um papel de interpretante, que criará uma imagem sobre o EU enunciador, que pode ir de encontro ou não com o que foi almejado inicialmente pelo EU. Assim, pode-se afirmar que o sujeito enunciador desdobra-se em dois papéis (EU comunicador e EU enunciador), tal qual o sujeito destinatário (TU destinatário e TU interpretante).
Nessa questão, com base em Charaudeau (2008), observa-se os quatro sujeitos de fala que compõe o ato de linguagem:
-O EU comunicador: é externo ao ato de linguagem e é ele que inicia o ato de produção. É um sujeito agente, responsável pela organização e representa a intencionalidade do ato;
-O EU enunciador: é apenas uma imagem de enunciador construída pelo EU comunicador. É interno ao ato de fala, porém é subordinado às decisões do EU comunicador;
-O TU destinatário: é o destinatário ideal fabricado pelo EU que o molda a partir de suas concepções. É interno ao ato de fala;
-O TU interpretante: externo ao ato de fala. É responsável pelo processo de interpretação onde o EU não terá domínio. É um agente autônomo e compreende o processo a partir de seu ponto de vista.
Portanto, ainda conforme o autor, o EU enunciador torna-se apenas uma “máscara” utilizada pelo EU comunicante e, este último, tendo consciência disso, utiliza-se de estratégias de transparência ou ocultação com o TU. O TU interpretante, no entanto, tem o trabalho de perceber as marcas discursivas e intencionalidades do EU comunicante presentes na fala do EU enunciador. Charaudeau (2008) complementa, ainda, que o ato de linguagem torna-se uma hipótese que o EU faz ao TU e da qual ele aguarda conformidade. Sobre a questão da estratégia, o autor comenta que
A noção de estratégia repousa na hipótese que o sujeito comunicante concebe, organiza e encena suas intenções de forma a produzir determinados efeitos de persuasão ou de sedução – sobre o sujeito interpretante, para levá-lo a se identificar – de modo consciente ou não – com o sujeito destinatário ideal construído por EU comunicante (CHARAUDEAU, 2008, p. 56).
Dessa forma, artifícios e circunstâncias são criadas e organizadas pelo EU comunicante para que, através do discurso proferido pelo EU enunciador, consiga influenciar o TU interpretante de tal forma que este último se adeque à imagem de TU destinatário ideada pelo EU comunicante no início do processo instaurado.
Por fim, sobre a dinâmica de composição do ato de linguagem, Charaudeau (2008) relata que sempre irá resultar de um jogo entre implícito e explícito, sendo moldado a partir de circunstâncias específicas de discurso, de processos de produção e interpretação e composto pelos sujeitos de fala (EU enunciador e TU destinatário) e por sujeitos agentes (EU comunicante e TU interpretante).
Discurso da mídia
Os veículos de comunicação midiática representam um importante papel na sociedade, posto que tem o poder da palavra compreendida como “verdade”. É de conhecimento comum, entretanto, que toda empresa de comunicação midiática é calcada em interesses econômicos e ideológicos que respondem a uma hierarquia empresarial. Todavia, uma informação só é considerada verdadeira após sua divulgação na mídia.
Esse artigo não tem a intenção de validar ou não a credibilidade dos veículos midiáticos atuais, mas preocupa-se em trazer considerações acerca dos mesmos no tocante ao discurso fabricado de notícias, considerando que as mesmas perpassam pelas intencionalidades e criação de sentido de um jornalista que a produziu e pelo crivo da linha editorial do meio de comunicação.
Charaudeau (2013) designa tal situação como “instância midiática”, ou seja, uma instância global que integra os diferentes atores que contribuem para determinar a instância da enunciação discursiva. Conforme o autor, devido a essa característica da comunicação midiática, é difícil identificar o agente responsável por uma informação.
A mídia busca construir e manter uma imagem de luta contra a manipulação e o poder, porém acaba por manipular a opinião pública através de suas publicações, que vão desde a escolha dos assuntos a serem abordados por ela até o modo de veiculação das notícias. De acordo com Charaudeau (2013, p. 17), “ [...] o cidadão aparece como refém, tanto pela maneira como é representado, quanto pelos efeitos passionais provocados”. Conforme ele, as mídias impõem construções discursivas no espaço público por meio de pontos de vista embasados em sentidos particulares de mundo, não representando a totalidade dos fatos, pois a informação é uma questão de linguagem e a linguagem é moldada para construir sentidos.
Nessa questão, é a lógica simbólica produzida pela mídia por meio do discurso que é passível de estudo, visto que representa valores e contextos de uma sociedade criada por um sujeito atuante no ato de linguagem para diversos sujeitos destinatários e interpretantes. Ou, como aponta Charaudeau (2013), o discurso é uma combinação das circunstâncias, intencionalidade e da identidade daquele que fala para quem se dirige.
O autor, nesse contexto, elucida a “situação de comunicação”, que é constituída por um quadro de referência que os sujeitos de determinada comunidade social utilizam ao iniciar uma comunicação. O discurso, ainda conforme Charaudeau (2013), é dependente das condições específicas da situação de troca no qual está inserido. Troca essa que se realiza em um ato de dupla intencionalidade, tanto do sujeito caracterizado como EU, quanto daquele posto como TU, que possuem um acordo prévio sobre os dados internos e externos do quadro de referência a ser utilizado.
Sobre os dados externos e internos da situação de comunicação, pode-se afirmar que: (i) os externos são as regularidades comportamentais que permanecem estáveis por certo período de tempo. Podem ser subcategorizados em “condição de identidade”, “condição de finalidade”, “condição de propósito” e “condição de dispositivo”; (ii) os internos, aqueles propriamente discursivos, referentes às formas verbais empregadas, maneiras de falar, papéis linguageiros a serem assumidos etc.
Ficam claras, aqui, as estratégias utilizadas pela mídia para a construção de sentido com o seu público. Ela, em todo ato de discurso, representa o papel de sujeito comunicante e sujeito enunciador, enquanto o público ao qual se dirige desempenha as funções de sujeito destinatário e sujeito interpretante. Para estabelecer uma compreensão mais aprofundada do tema e sua relação com o corpus de análise escolhido para o presente trabalho, serão apresentadas, a partir de agora, conceitualizações a respeito da Teoria Semiolinguística de Charaudeau (2005).
Teoria Semiolinguística
De extrema importância no campo da Análise do Discurso, a Teoria Semiolinguística relaciona questionamentos da linguagem a partir de fenômenos externos (contexto social) e internos (construção de sentido e de texto). Busca compreender, em determinada situação, a tentativa de influência realizada por um sujeito social por meio da construção de sentidos através de seu discurso.
Charaudeau (2005) corrobora tal afirmação ao comentar que o sentido de um discurso não é dado antecipadamente à execução do mesmo, mas no ato de troca social linguageira, sendo que ele só será perceptível através das formas linguageiras utilizadas. Conforme o autor, o ato de linguagem pressupõe uma intencionalidade dos parceiros de troca, que irá depender da identidade dos mesmos, calcados em um espaço e tempo determinados. Assim, pode-se afirmar que, por trás de todo ato de linguagem, existe um desejo dos agentes de fala (desdobrados aqui em EU e TU) que são construídos a partir das identidades sociais determinadas a partir de um contexto sócio histórico.
A identidade, nesse quadro situacional, também possui relação quanto à imagem que um agente de fala irá ter do outro, pois o ato de linguagem constitui-se a partir do momento em que os sujeitos reconhecem o direito de fala atribuído ao outro, assim como um mínimo de saberes compartilhados para a realização de uma troca linguageira. A partir do momento em que um sujeito não reconhecer no parceiro de troca a fala constituída, não haverá validade no ato.
Nesse sentido, Charaudeau (2005) afirma que um ato de linguagem irá possuir dois espaços: o das restrições e o das estratégias. O espaço das restrições comporta as condições mínimas e necessárias para que um ato de linguagem seja válido (ou seja, os saberes compartilhados e a autenticidade do direito a fala do outro), enquanto o espaço das estratégias compreende os subterfúgios realizados pelos sujeitos de fala afim de produzir sentido ao outro no ato de linguagem.
O autor relata, ainda, que o ato de linguagem constitui-se por meio de uma dupla significância que determina dois sujeitos de linguagem. A primeira, externa à verbalização do ato de linguagem, diz respeito aos sujeitos de ação, aqueles possuidores de intenção por trás dos atos de fala, que recebem a alcunha de sujeito comunicante e interpretante (EU comunicante e TU interpretante). Já a segunda significância concerne à questão interna à verbalização, onde os protagonistas são os responsáveis pela prática do ato de linguagem, conhecidos como sujeito enunciador e sujeito destinatário (EU enunciador e TU destinatário). Conforme Charaudeau (2005), mesmo que haja uma relação de condição entre essas duas significâncias, os tipos de sujeitos externos e internos à verbalização não possuem relação de transparência absoluta.
Em resumo, o autor expõe que o ato de linguagem, como situação concreta de troca, é dependente de: (i) intencionalidade, (ii) tempo e espaço definidos, (iii) estratégias de troca linguageira e (iv) dependência a um espaço interno e externo à linguagem. Assim, propõe um modelo de estruturação do ato de linguagem em três níveis:
1. Situacional: refere-se ao espaço externo. Nesse nível, estão determinados a finalidade do ato de linguagem, a identidade dos parceiros de troca, o saber veiculado por ela e o dispositivo constituído pelas circunstâncias materiais da troca;
2. Comunicacional: local que determina as maneiras de falar de um ato de linguagem.
3. Discursivo: lugar de intervenção do sujeito enquanto enunciador.
O mesmo deve atender a condições de legitimidade de sua fala, credibilidade e captação. Organiza seu discurso por via de meios linguísticos devido às restrições do situacional, assim como por seu intento de fala.
Procedimentos Metodológicos e de Análise
A análise do discurso define as características do gênero ao qual pertencem os textos, as variantes que aparecem em determinado gênero e as estratégias particulares de fala. Além disso, debruça-se sobre um corpus referente a um determinado tipo de situação de comunicação para que sejam definidos um gênero e tipologia de estratégias possíveis dentro dele. Segundo Charaudeau (2005), o objetivo da análise do discurso visa destacar características dos comportamentos linguageiros em função das condições psicossociais dos sujeitos conforme as situações de troca. Condições essas que são estruturadas em “contratos de comunicação” onde preside toda a produção linguageira.
Para os procedimentos de análise, a possibilidade de descrever as condições de criação de um ato de linguagem ocorre no momento em que se reúnem produções de uma mesma situação de comunicação, conhecidos também como “corpus de texto”. É a partir deles que a análise estruturará suas considerações sobre o discurso instaurado no texto selecionado.
Charaudeau (2005), no tocante aos procedimentos metodológicos, propõe a construção de uma tipologia que busca a compreensão das condições de realização de um texto, ou seja, dos contratos de comunicação, não de suas formas ou sentidos. O corpus, nesse sentido, surge como um exemplo de contrato de comunicação, visto que, a partir dele, torna-se possível a análise de textos particulares para uma proposta de tipologia.
Ainda conforme Charaudeau (2005), as hipóteses metodológicas da análise do discurso tem como base três considerações: (i) todo sujeito, em um ato de linguagem, deve saber posicionar-se no espaço de fala, com vistas a legitimá-la perante o outro; (ii) todo sujeito utiliza-se de estratégias para situar-se frente ao parceiro no ato de linguagem e (iii) todo sujeito deve situar-se em relação à enunciação de sua proposição de mundo. Tais hipóteses determinam o espaço da locução, da relação e da tematização-problematização no estudo dos atos de linguagem.
Foi selecionada como corpus de análise desse artigo uma reportagem especial veiculada no portal de notícias na internet do periódico gaúcho Zero Hora no dia 16 de agosto de 2014, denominada “Novos imigrantes mudam o cenário do Rio Grande do Sul”. Nela, os repórteres Carlos Rollsing e Humberto Trezzi descrevem o dia a dia de imigrantes africanos que atualmente vivem no estado.
O presente trabalho tem como objetivo verificar marcas discursivas ao apontar os dados internos e externos do contrato de comunicação presente no corpus. Sobre os dados internos e externos do ato de linguagem, pode-se afirmar, conforme Charaudeau (2013) que os dados externos são constituídos pelas regularidades comportamentais dos indivíduos que efetuam trocas e pelas constantes que caracterizam essas trocas e que permanecem estáveis por um determinado período. Podem ser reagrupados em quatro categorias que darão base à análise proposta aqui: condição de identidade, condição de finalidade, condição de propósito e condição de dispositivo.
Tendo como base tais características, pode-se afirmar, a partir do corpus de análise, que a condição de identidade do mesmo (aquela que revela a identidade dos parceiros de troca, que aqui designa-se em duas correntes, sujeito enunciador e comunicante assim como sujeito destinatário e interpretante, visto que se está analisando um texto monológico e não se está presente no momento de troca) está apresentada da seguinte maneira:
- sujeito enunciador e comunicante: sobre esse sujeito do ato de linguagem (ou sujeitos, se considerarmos que ele responde a uma linha editorial designada por outros), pode-se notar, por meio de suas marcas discursivas no corpus de análise, que, inicialmente, pauta sua fala em afirmações generalistas de pobreza e miséria dos imigrantes africanos, como pode ser percebido em “fogem da pobreza: no Brasil, podem ganhar até seis vezes mais do que no seu país de origem”, “passou horrores na jornada, dormiu ao relento, migrou para Bento Gonçalves, conseguiu emprego e hoje se diz ‘rico’”, “seus habitantes querem é fugir da falta de trabalho e de dinheiro”, “acolher as centenas de haitianos, dominicanos e senegaleses que desembarcaram na cidade nos últimos três anos, com frio, sem emprego ou lugar para dormir” e “passou fome na procura por emprego em Gana”. Outra questão a ser levantada sobre a identidade desse sujeito é que emprega ao Brasil um status de terra prometida aos imigrantes, como observa-se nos trechos “o Brasil é bom para ganhar dinheiro”, “os senegaleses são só elogios ao Brasil”, “para quem ficou dormindo em banco duro de rodoviária, atordoado pelo ruído dos veículos, passando frio e fome, o seminário Nossa Senhora Aparecida, em Caxias do Sul, lembra um paraíso” e “não tem dúvidas de que o Brasil ‘é o melhor país do mundo’”.
Por fim, fica claro, na narrativa, que o sujeito enunciador e comunicante valoriza os novos imigrantes quando aponta, também de maneira generalista, a questão de nível de conhecimento e escolaridade dos mesmos: “Iaboa era universitário, estudante de Administração de Empresas, mas aqui está disposto a fazer qualquer coisa para sobreviver”, “e indianos que vieram para cá são de uma certa classe média urbana. Muitos têm Ensino Médio, Superior incompleto ou mesmo completo”, “parte significativa é poliglota. No caso do Haiti, há pesquisadores que já classificam o fenômeno como uma ‘fuga de cérebros’ do país”, “tem faculdade na área de exatas, mas agora têm de lutar para sobreviver” e “e vêm com uma habilidade a mais em relação aos brasileiros: falam o idioma inglês”.
- sujeito destinatário e interpretante: vive em sociedade formada culturalmente pelas imigrações que compuseram a miscigenação racial e cultural do Rio Grande do Sul, como os alemães e italianos. A identidade do sujeito destinatário e interpretante, nesse caso, ainda é moldada pela lembrança do sofrimento que seus antepassados sofreram ao chegar ao Estado, como pode ser percebido nos trechos “onde imigrantes italianos, alemães e poloneses se instalaram aos milhares no século 19” e “depois de amparar os italianos, os scalabrinianos atravessaram mais de cem anos de espera para acolher os imigrantes negros da África e da América Central. Um paralelo histórico que suscita temas como o racismo e a xenofobia”. Ainda se denota, sobre a influência da colonização, um certo orgulho do trabalho árduo de seus antecedentes familiares: “o sonho de todos é o mesmo dos colonos que chegaram há quase 200 anos: conseguir um lugar ao sol. Produzir.
Vencer no Brasil”.
A partir do corpus, pode ser observado que, culturalmente, o sujeito destinatário e interpretante vive em uma sociedade que preza pela caridade e atos de bondade para com o próximo, como pode ser observado em “alimentado pela caridade alheia [dos gaúchos]”, “no vácuo do Estado, a Igreja assumiu a vanguarda solidária” e “passavam o dia atormentados pelo frio serrano, usando blusões recém-doados pelos fiéis da paróquia”. Entretanto, nessa mesma sociedade de caráter solidário, podem ser percebidas marcas discursivas que abordam o contrário, como em “mas existem relatos de exploração”, “havia, segundo definição do MPT, 100 haitianos abrigados em local similar a uma senzala” e “no início, tínhamos preocupação com a receptividade porque o italiano, em geral, é racista”.
Entretanto, algumas marcas discursivas abordadas pelo texto denotam que o sujeito destinatário e interpretante vive em uma sociedade que, no geral, possui baixo grau de conhecimento: “ele tenta, muitas vezes em vão, se comunicar em inglês com a população do Vale do Taquari” é um exemplo de trecho que demonstra tal afirmativa. Ainda sobre a sociedade em que está inserido o sujeito destinatário e interpretante, pode-se afirmar, por meio do corpus, que é composta por brasileiros que hoje enfrentam uma onda de desemprego, mas não se subjugam a trabalhos braçais mais pesados, como pode ser observado nas citações “sem eles, as linhas de produção corriam o risco de parar, efeito do desinteresse da população local – focada em melhores empregos – em desempenhar atividades pesadas e menos rentáveis”, “mas a permanência é facilitada porque o mercado tem interesse na mão de obra” e “são setores em que a mão de obra também é escassa”. Por fim, com o trecho “e, lá, eles não são “invisíveis” como na Capital”, pode-se inferir que a sociedade atual, principalmente a que vive nos grandes centros urbanos, como a cidade de Porto Alegre, não é receptiva aos novos imigrantes, visto que não os consideram dignos de visibilidade.
Sobre a condição de finalidade do corpus, pode-se inferir que transparece no texto a visada informativa (quando traz questões de cunho informativo sobre o fluxo migratório, como pesquisas já realizadas na área), a visada iniciativa (por meio de um discurso calcado em elementos que inferem veracidade ao sujeito destinatário, como o desígnio e apresentação de fontes de informação para ratificar o que disse em seu ato de linguagem) e a visada pathos (pois, por meio de sua construção de fala, traz elementos que atingem emocionalmente o sujeito destinatário, como a reiteração, sempre que possível, das dificuldades enfrentadas pelos novos imigrantes).
Em relação à condição de propósito, pode-se inferir, a partir do corpus de análise, que se trata de uma temática recorrente e de grande importância para a configuração identitária, social e cultural do Rio Grande do Sul. Como é justificado na linha de apoio da reportagem, “Nova migração é um movimento recente, mas suficientemente forte para causar modificações econômicas, étnicas e culturais”.
A condição de dispositivo do corpus pode ser explicada pelo atual momento tecnológico em que vive a sociedade. Além da reportagem analisada ter sido veiculada no mais tradicional veículo de comunicação midiática, o jornal impresso, foi de modo on line que adquiriu aspectos sócio-culturais contemporâneos, como uma linguagem simples e direta e a criação de um documentário sobre a mesma, que não poderia ser consumido no meio mais tradicional de comunicação.
a) Os dados internos são aqueles propriamente discursivos, de comportamento de parceiros de troca e emprego de formas verbais a partir de restrições situacionais. Dividem-se em três espaços de comportamentos linguageiros: locução, relação e tematização.
No espaço da locução do corpus (conquista do direito de “tomada de palavra” pelo sujeito falante), apresenta-se por meio da credibilidade dos jornalistas, ainda mais aqueles que trabalham para as grandes mídias de difusão em massa, como o caso do veículo no qual está inserido o texto analisado, o jornal Zero Hora.
Já no espaço de relação (onde o sujeito falante estabelece relações com o destinatário), pode-se inferir que o corpus de análise denota tentativas, por parte do sujeito comunicante, de criar laços emocionais com o público, como quando apresenta um quadro social em sua reportagem onde os habitantes do Rio Grande do Sul, em sua maioria, aparecem como indivíduos que possuem antepassados imigrantes que lutaram e venceram no país, e no momento em que aborda a sociedade atual como um lugar acolhedor ao imigrante.
No espaço de tematização (local em que é designado o domínio do saber), afirma-se que o sujeito falante, em relação ao tema imposto pelo contrato de comunicação analisado, escolhe um modo de intervenção diretivo, enquanto como modo de organização discursiva utiliza os contextos descritivos e argumentativos.
Considerações Finais
Interessado em analisar o discurso da mídia gaúcha acerca dos novos imigrantes de origem africana no Rio Grande do Sul e visando compreender as questões culturais e identitária a partir dos dados externos e internos do ato de linguagem, este trabalho realiza, a partir de agora, suas considerações.
Compreende-se a dificuldade de realizar uma análise do discurso a partir do ponto de vista dos sujeitos comunicante e interpretante do ato de linguagem. Sabe-se aqui, entretanto, que a análise de um texto (ainda por cima de caráter monológico, como foi o utilizado como corpus) trabalha com possibilidades, mais precisamente de possíveis interpretativos. Entende-se, ainda, que a interpretação de um texto desvinculado de sua circunstância de produção só pode ser realizada por meio de induções a respeito da identidade e marcas culturais do sujeito comunicante e enunciador do ato de linguagem. O que será realizado a seguir serão inferências a partir da coleta dos dados analisados.
A importância da realização da análise do discurso da mídia centra-se em questões fundamentadas a partir de contextos sociais, históricos e culturais: a compreensão das intencionalidades de um veículo midiático a partir de suas pautas e publicações. A comunicação midiática suporta uma instância de produção, que exerce o papel de informadora ao público, ao mesmo tempo em que deve despertar o desejo dele, e uma instância de interpretação, cuja função é voltada aos consumidores no interesse pelas informações veiculadas.
Pode-se observar, a partir do corpus de análise do presente trabalho, que o jornal Zero Hora, ao publicar a reportagem “Novos imigrantes mudam o cenário do Rio Grande do Sul”, abarcou tanto a instância de produção, ao informar um novo fluxo migratório que ocorre no Estado desde o ano de 2010, quanto à de interpretação, visto que fez uso de estratégias de cunho emocional para comover e despertar o interesse público, como a recorrente construção da imagem dos novos imigrantes como pessoas bondosas, humildes, inteligentes e sofridas.
Denota-se, a partir das marcas discursivas do sujeito comunicante e enunciador, que a base de seu discurso está vinculada a afirmações de caráter homogêneo, considerando os novos imigrantes (mesmo que vindos de países e culturas diferentes) como um grande grupo cultural e socialmente uníssono.
A mídia gaúcha, também, tem-se valido de estratégias de produção como uma abordagem voltada quase que inteiramente a acontecimentos da região. Isso faz com que a notícia desperte um interesse no sujeito destinatário e interpretante, posto que a proximidade geográfica e cultural ao fato ocorrido é significante na escolha de informações a serem consumidas por ele.
No caso do corpus de análise, é percebida uma abordagem que preza pela valorização do regional, apresentando características identitárias dos primeiros imigrantes italianos e alemães, e construindo uma relação com os novos imigrantes africanos, cuja publicação denota que passam hoje pelas mesmas dificuldades e privações daqueles que vieram ao Rio Grande do Sul no final do século 19.
Nesse momento, é importante salientar que o discurso apresentado pelo corpus passou por um “tratamento interpretativo” de um agente de fala. Assim, um fato nunca será transmitido ao público em seu estado real, posto que passa pelo olhar de um sujeito que interpreta a informação e a reconstrói para o público a partir de significados inerentes a si, como sua identidade e aspectos culturais.
Fica claro, enfim, que a mídia gaúcha apresenta seu discurso de maneira generalista em relação aos imigrantes, considerando-os em uma unidade compacta e não levando em conta que os mesmos são oriundos de diferentes realidades sociais e culturais, enquanto aborda o sujeito destinatário e interpretante como inserido em uma sociedade paradoxal: ao mesmo tempo em que provém de uma cultura de trabalho e esforço criada pelos primeiros imigrantes, não se subjugam hoje a cargos braçais; mesmo que sejam caridosos com os novos imigrantes no Estado, possuem marcas identitárias oriundas da imigração italiana e alemã, que denotam marcas de racismo.
Referências
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Revista Investigações Vol. 29, nº 2, Julho/2016
ZERO HORA. Novos imigrantes mudam o cenário do Rio Grande do Sul. Disponível em: <zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/08/novos-imigrantes-mudam-o-cenario-do-rio-grande-do-sul-4576728.html>. Acesso em 01 ago. 2015.
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